2 de out. de 2015

Spoils [Espólios] - Protest the Hero



Dotados com a arte de a todos os seres nomear,
os humanos decidiram a cada coisa viva dominar

O orgulho como fim, ao começarem a peregrinar, enquanto
rotulam as criaturas captadas pelo amaldiçoado corpo – o consciente cérebro humano

Toda palavra, uma vez escrita, terá perdida a sua intenção
Mesmo cantada, gritada ou proferida, elas traem a significação

A língua é o lamento do coração, uma frágil experiência
pra contornar a solidão inerente à busca pela permanência

Todos os futuros fantasmas que marcam seus nomes no cimento fresco
Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio.

Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio...
As abstrações são a estaca entre a anima e o animus

Descarna a palavra enquanto chaga do destino humano;
Observa o mundo em teu semelhante, a vida é transparência.

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            Esses dias tive que fazer uma prova de espanhol em que havia uma pergunta sobre como eu definiria "un texto citado". Assim que li a questão, me veio na cabeça exatamente essa música. Respondi, automaticamente, algo como “é a expressão da nossa capacidade de transmitir mensagens de terceiros”. Na hora, passei a viajar com a lembrança da música, e fiquei pensando sobre a linguagem verbal, de modo geral... Que é ela quem nos separa definitivamente de qualquer outro animal, é ela quem nos coloca como bruscamente diferentes deles. E é ela que, ao mesmo tempo que permite construir um mundo diferente do animal, de cadeia cíclica da natureza, também assegura uma incapacidade do ser humano de entender a sua essência. Assegura a incapacidade do ser humano de captar e transmitir (nomear) os seus sentimentos, conceitos, referentes pessoais.
A língua, em si mesma, fere a vida orgânica, a troca instintiva-sentimental entre dois humanos, ainda que muitas vezes seja a base sobre a qual essa troca se fundamenta. Afinal, a língua é um fato social, ela é construída, portanto claro que afeta o natural. Lembrei disso tudo porque um dos conceitos da aula dessa prova era que ao transmitir uma mensagem de terceiros, sempre prejudicaremos algum atributo – a entonação, a intenção, a carga que cada palavra carregava em sua fala original , e a língua funciona nessas horas como uma tentativa constante de expressar o mais próximo possível esses atributos. Mas transmitir essa carga é impossível, por mais que adaptemos nossa mensagem. 
O que quero dizer com isso é que diferente dos animais, que só podem se comunicar de maneira totalmente orgânica e direta, os humanos só se comunicam ferindo esse lado comunicativo natural (que, por que não, também possa ser integrante de nossa essência). Ou seja, a língua é ao mesmo tempo construtora e destruidora dos nossos sensos e sentimentos; como um equilíbrio desajustado (equilíbrio por conter os dois atributos ao mesmo tempo; desajustado pelo fato dos mesmo atributos ferirem as intenções reais). E a música aqui em questão trabalha exatamente isso.


            Toda palavra, uma vez escrita, terá perdida a sua intenção / Mesmo cantada ou gritada ou proferida, elas traem a significação”. Na letra original, o trecho é mais algo como “cada palavra, ao ser nomeada, vai cair em sua intenção / falada, cantada, ou gritada, elas trairão o que pretendiam significar”. Ou seja, no próprio momento em que um indivíduo usa uma palavra (um signo), seja para descrever, nomear, expressar algo, esse signo já não será mais a coisa em si, já não será mais a expressão, a coisa descrita, ou seja, a essência se perde. Você já tentou descrever pra alguém o que você sentiu quando ouviu uma música que te balançou a alma?, ou quando viu uma peça de teatro que te tocou profundamente?, ou um poema que arrepiou a espinha? Se já tentou, sabe do que estou falando. Mas por que tentamos? Por que tentamos expressar isso que sentimos com a música/peça/poema? Sendo que a experiência só pôde ocorrer pela sintonia que se estabeleceu entre você e o artista, mais vocês e o ambiente (contexto)...
            A resposta dessa música é: “A língua é o lamento do coração, uma frágil experiência / Para contornar a solidão inerente à busca pela permanência”. Esse trecho pra mim é o mais tocante. Obviamente, não consigo expressar em palavras. Mas é isso! Tentamos prolongar aquilo que sentimos de bom. Buscamos a permanência, mas a língua nada mais é do que uma sempre frágil tentativa disso, tentativa que chega a ser solitária/melancólica. Essa melancolia não é o nosso sentimento em si, mas a tentativa inerentemente frustrante de procurar transmitir aquilo que captamos.
            A permanência aqui pode ser entendida tanto da forma dita acima quanto como uma permanência do próprio ser humano na Terra, entendida mais como a busca do sentido da vida mesmo, que não pode ser suprida por linguagem humana alguma. As duas interpretações se fazem presentes no mesmo verso, mas essa segunda é continuada pela estrofe seguinte: “Todos os futuros fantasmas que marcam seus nomes no cimento fresco / Dessignificando os significados, ao gritarem para o vazio”. É justamente pela língua que podemos pensar sobre o sentido da vida, mas ao invés de nos dar respostas, ela só traz a perturbação deste pensamento; também com a linguagem é que tomamos consciência de que nossa vida não é permanente. Por isso também o lamento do coração. Além disso, os "futuros fantasmas" gritam para o vazio ao marcarem os nomes (tal como pegadas) no cimento fresco pois assim desafiam um atributo natural da vida: a passagem. Dessignificar um significado/sentido pode ser entendido também como uma afronta cega a algum "sentido" não captável que deve haver no caráter passageiro das coisas, uma vez que é natural, ao tentar transforma-lo em permanente. 

         Um outro exemplo sobre a incapacidade desse tipo de transmissão/comunicação pela linguagem são as diferentes ideias que cada um tem sobre um mesmo conceito. Quando lemos num texto algo que fala sobre uma dor, sobre um amor, algo do tipo, cada um lerá isso com um referente pessoal, portanto, apesar de escrito da mesma forma, será um texto diferente para cada um que o leia. Quando, por exemplo, alguém me diz que tem tantos amigos, talvez o conceito que ele carrega de 'amigo' não seja o mesmo daquele que eu carrego. O mais interessante em relação a isso talvez seja quando envolvemos a arte. Às vezes é justamente essa diferença nos referenciais que fazem um texto tocar ou ser mais potente em um alguém X mas não num alguém Y.

Aquilo captado é completamente pessoal e intransferível em essência. O comunicar, o tornar comum, é ferido pela palavra – o que já não acontece com o comunicar através de um abraço, de um entrelaçar de mãos, de um olhar, coisas que exigem em si próprias uma sintonia fina. E aí entra a poesia! Daí a necessidade de transcender a palavra, de transcender a sintaxe, o som, transcender a própria língua através dela mesma, a fim de tentar transmitir aquilo que captamos de alguma forma. Creio que assim construímos as poesias, e o curioso é que, como resultado, temos novamente um novo produto: um novo ser que não a nossa captação em si, mas a materialização dessa tentativa, que acaba tendo potencial para tocar a alma de um outro alguém justamente porque procurou transcender os limites do bruto da língua, durante sua criação.
Daí o trecho final: “Descarna a palavra enquanto chaga do destino humano / Observa o mundo em teu semelhante, a vida é transparência”. Creio que esse trecho se refere justamente às coisas ditas acima: viva mais organicamente, procure a sintonia (a transmissão de sentimentos, ideias, enfins) de forma mais viva, pulsante e de fato real; quando usar das palavras para isso, descarna-as: transcenda-as, pois só assim para a transparência se fazer presente; através da arte é mais possível do que pela concretude do dicionário. Particularmente acho sensacional essa imagem... Descarnar a palavra... Tirar o conceito/expressão/captação do corpo que os aprisiona: o signo; tal como procuramos “descarnar” (não ‘desencarnar’!) aquilo que nos pulsa no espírito.

Uma amiga outro dia me contava sobre uma conversa que teve com outro amigo, que apresentou a ela o conceito de “amizade artística”. Ela me resumiu como sendo algo do tipo "encontrar um aflorar de sua própria criatividade na virtuosidade do outro", criatividade aqui entendida não só como a produção de algo, mas de um olhar criativo para si e para o mundo, um olhar que burle a rotina do bruto. E entendo a arte em si, como dita aqui, sendo meio que isso mesmo. Nessa música, o autor também procura implicitamente valorizar a potência da música enquanto arte, a música como sendo em si própria a expressão, o elo de comunicação. Ela não precisa da concretude das palavras pra transmitir aquilo que irá pulsar o espírito: as ondas sonoras na música, em sintonia com nosso ser (pois que não é só com o ouvido que se ouve), são a própria essência.Tô escrevendo isso aqui porque só esses dias quando revisitei essa música e fui pensando nessas coisas é que pude ver claramente como o sentido mais profundo do termo "artística" pra qualificar essa amizade; como faz todo o sentido isso!

Quanto à primeira parte da música, as duas primeiras estrofes, acabei deixando mais de lado aqui, mas também acho a ideia dela muito foda. Elas passam muito bem a arrogância humana de que, porque podem nomear a tudo (dominar a linguagem), se sentem maiores do que todos, inflando uma prepotência que na verdade é disfarce de sua própria insuficiência. O consciente cérebro humano é também um corpo amaldiçoado por sua própria habilidade (como já foi explorado anteriormente). Sobre a prepotência humana e sua capacidade de autodestruição, há uma outra música dessa mesma banda, também comentada aqui no blog: Sequoia Throne.

Enfim, pessoas! Tentei aqui falar um pouco disso que pra mim é bem profundo e tocante: a insuficiência da linguagem como parte da pequenez humana. Esse ser que é capaz de construir coisas grandiosas, grandes civilizações, artefatos tecnológicos absurdos, conceitos ultra elaborados, mas incapaz de ser inteiro, incapaz de entender seu rumo. Por tudo isso, pra mim, o assunto da linguagem como foi abordado na música é muito mais profundo do que parece. Espero que tenham gostado do som e aproveitado qualquer coisa que seja da discussão!
            Pra finalizar, vou deixar aqui um trechinho lindíssimo de um poema da Adélia Prado, chamado “Antes do nome”, que explora exatamente tudo isso discutido aqui:

                    (...)
            A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda
            foi inventada para ser calada.
            Em momentos de graça, infrequentíssimos,
            se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
            Puro susto e terror.




OBS. #01: “Espólios”, título da música, pode significar “herança”, “produtos de roubos” ou “coisas que não são tomadas numa guerra, ou seja, restos, despojos”. A brisa-interpretação fica por conta aí. =)


OBS. #02: O verso que fala “As abstrações são a estaca entre a anima e o animus.” não foi abordado ao longo do texto porque isso daria um texto gigante só pra trabalhar os conceitos de anima e animus. Esses conceitos são usados pela literatura junguiana (Carl Jung – Psicologia Analítica) e são um tanto complexos. Mas usando aqui muito a grosso modo, “anima” seria o “complemento feminino” inconsciente que todo ser humano de sexo masculino possui, enquanto o “animus” é o “complemento masculino” inconsciente que todo ser humano de sexo feminino possui.
Na minha humilde e breve interpretação, na música, “anima e animus” são tidos de modo mais generalizado, como o inconsciente do indivíduo, o todo do verdadeiro eu interior (“inner self”), em oposição à persona, que é o ser consciente construído social e psicologicamente. Você vai ver que qualquer descrição que der o deixará insatisfeito, o que é claro, afinal aquilo que você é em essência não é nomeável; você pode dizer onde mora, o que faz, como é, etc., mas vai se perguntar “mas eu sou só isso mesmo?”. Tudo isso será apenas a sua “persona”, o seu “eu” – construído moral/socialmente –, mas não o seu “si mesmo”, como chamava Jung. O teu “si mesmo” (a tua essência, entenda isso como quiser) não é possível ser nomeada, e ela faz parte daquelas coisas pessoais e intrasferíveis, tal como o sentir poesia de cada um. Lembrando aquelas coisas sobre transcender, como já dito antes, não a toa os poetas tentam se descrever poeticamente, os pintores procuram pintar autorretratos poeticamente, e assim vai...
Eu entendo esse trecho, tentando resumir bem, também da seguinte maneira:
É abstrata, no nível mais profundo do nosso ser, a diferença entre anima-animus / feminino-masculino. Por isso ela é a estaca. Não há, no nosso âmago, uma divisão opaca, concreta entre anima e animus; animicamente, por possuirmos esse todo (por esse complemento inerente), somos um todo, enquanto seres humanos. E essas coisas, esse estado de comunhão, não se atingem com as palavras (com a carne) mas com a “transparência da vida” (com a abstração). 

[Pra quem quiser se introduzir e começar a se aprofundar um pouco na questão específica do “anima e animus”, sugiro que leiam esta postagem neste blog (Café com Jung). 
Já quem quiser conhecer mais a pesquisa dele (o que recomendo muito!) sugiro que leiam o livro sobre Jung da coleção “L&PM Pocket ENCYCLOPEDIA”, escrito por Anthony Stevens. Ele é baratinho e fácil de encontrar.]


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