15 de fev. de 2015

Beggars [Mendigos] - Thrice

OBS: Sugiro que, se forem dar o play na música aí, não assistam o vídeo, só ouçam... Não tem clipe essa música, esse link que escolhi tem um vídeo não oficial com a letra (em inglês), só que o vídeo tira a brisa da música :/ Sei lá, pra mim afetou a experiência, porque não combinou com a levada... Só escolhi esse link porque a qualidade do som mesmo tá bem melhor que nos outros.

All you great men of power, you who boast of your feats
Politicians and entrepreneurs
Can you safe guard your breath in the night while you sleep?
Keep your heart beating steady or sure?
As you lie in your bed does the thought haunt your head
That you're really rather small?
If there's one thing I know in this life, we are beggars all

All you champions of science and rulers of men
Can you summon the sun from it's sleep?
Does the earth seek your council on how fast to spin?
Can you shut off the gates of the deep?
Don't you know that all things hang as if on a string over darkness, poised to fall?!
If there's one thing I know in this life, we are beggars all

All you big shots who swagger and stride with conceit
Did you devise how your frame would be formed?
If you'd been raised in a palace or left out on the streets,
You choose the place or the hour you'd be born?
Tell me what can you claim? Not a thing!, not your name!
Tell me if you can recall just one thing, not a gift, in this life

Can you hear what's been said, can you see now that everything's grace, after all
If there's one thing I know in this life we are beggars all

-

Todos vocês, homens do poder, vocês que se vangloriam de suas proezas,
Políticos e empresários;
Vocês podem velar pelo ar que respiram enquanto dormem à noite?,
e manter seus corações batendo de forma constante e tranquila?
Enquanto se deitam em suas camas, o pensamento de que vocês são,
na verdade, bem pequeninos não assombra suas mentes?
Se há uma coisa que sei nessa vida... Nós somos, todos, uns pobres mendigos.

 
Todos vocês, campeões da ciência e ditadores dos homens;
Vocês podem evocar o sol de seu sono?
A Terra procura seu conselho sobre o quão rápido deve girar?
Os portões das profundezas, vocês podem selar?!
Vocês não sabem que todas as coisas se suspendem como que
por uma fina corda sobre o desconhecido, cambaleantes prontas a cair?!
Se há uma coisa que sei nessa vida... Nós somos, todos, uns pobres mendigos.

 
Todos vocês, estrelas que se gabam e arrasam, na prepotência;
Foram vocês que inventaram como essas suas carcaças seriam formadas?!
Se vocês tivessem crescido num palácio ou se fossem deixados pelas ruas
Vocês que escolhem a hora e o local que nasceriam?!
Me fala uma só coisa que vocês podem postular! Nem um nada! Nem o seu nome!
Me fala se vocês podem evocar uma só coisa que não é uma dádiva nessa vida!...

 
Vocês conseguem ouvir o que foi dito? Vocês podem ver, agora, que tudo é uma benção, afinal de contas...
Se há uma coisa que sei nessa vida... Nós somos, todos, uns pobres mendigos.

-

          Já to arrepiado! Não tem como... Toda vez  que paro o que to fazendo pra dedicar minha atenção a só ouvir essa música, não tem como não me emocionar. A forma como esse cara canta essa música, que sintetiza o álbum homônimo (Beggars), é de uma entrega e uma emoção tal que, associando à letra, pra mim se torna uma profunda oração. Soa como um rogo profundo. O som é uma delícia, tem uma levada simples que envolve, e os elementos que vão entrando a cada estrofe dão num clímax fudido! Quem curtiu o som, recomendo muito que escute o álbum todo. Mas partindo agora pro significado, tem aí uma mensagem um tanto clara, mas que é possível esmiuçar coisa ou outra...
          A letra é como uma afronta àqueles que parecem brincar de comandar o novo mundo: políticos, empresários, cientistas e as estrelas da aparência (e aqui entram desde celebridades fúteis até "pastores" de famosas igrejas - enfim, todos aqueles que ganham a vida vendendo aparências, que na verdade inclui até os próprios políticos, empresários e cientistas citados anteriormente...). Mas na verdade são alguns pontos universais que entram aí, e o principal, ou a síntese, é a pequenez e a fragilidade humana perante o mundo, o sagrado e a própria humanidade: "we are beggars all".

          Não quero me prolongar falando daquilo que já tá bem claro na música. A suposta grandeza dos feitos desses homens de poder é contraposta pelo sentimento da pequenez humana. É como se perguntar de que valem as supostas proezas, sendo que todos temos em comum esta condição de fragilidade perante a vida e o mundo, de que vale construir um mundo de aparências, uma vida política cheia de luxúria, vaidade, atrasando a vida de tanta gente, fazendo escolhas superficiais ou maldosas em prol da manutenção da sua imagem, sendo que esta também é tão frágil de se destruir?
          Além disso, tudo aquilo de que esses homens de poder têm tanta convicção, tudo o que supõem garantir, na verdade também é frágil. Teorias e procedimentos nascem e caem a todo tempo, coisas que são tomadas como verdades absolutas, amanhã podem ser negadas ou no mínimo relativizadas. Aliás, isso é verdadeiramente fazer ciência: dado esse caráter transitório das verdades, é necessário estar sempre aberto a construir cada vez mais perguntas inovadoras, ao invés de perseguir respostas supostamente absolutas. “Vocês não sabem que todas as coisas se suspendem como que por uma fina corda sobre o desconhecido, cambaleantes prontas a cair?!”.
         Mas não é esse espírito verdadeiramente científico o que estamos vendo imperar no nosso mundo hoje. Quase sempre, nesse meio, não se quer assumir que se esteve errado, só para não perder o lugar no alto escalão da ciência ou mesmo perder apoio político. As referências sobre isso são inúmeras. Mas parece que há uma fórmula básica no pensamento científico dominante: "divulgue apenas o que convém, esconda tudo o que nos contraria, e assim vamos criando falsas verdades que nos confortam". Descobertas, pesquisas, experiências reais, teorias que negam outras, muitas vezes tudo isso é silenciado em prol da manutenção do status quo pessoal e social. Enfim, o buraco é sempre mais embaixo e enquanto não captarmos a humildade disso, e não tivermos a humildade pra entender isso, essa prepotência continuará sendo geradora de problemas de força destrutiva imensurável.

Escultura de Ron Mueck "Homem em um barco"


        A terceira estrofe, contudo, é pra mim a mais potente, e é onde a emoção do vocal começa a ficar gritante, o que contagia muito. Ela me passa uma filosofia e uma síntese do que é viver, em suas entrelinhas; um conjunto de coisas que vem na mente como um fluxo violento em potência, que com certeza não vou conseguir passar aqui, mas vou tentar falar um pouco...
        Primeiro, acho excelente a escolha do Dustin Kensrue (o compositor) pra falar de como não escolhemos muita coisa nessa vida, ao associar isso com a nossa “carcaça”, afrontando todos aqueles que se gabam e vivem das aparências físicas. [Claro que hoje, com o nosso tal “avanço científico”, podemos fazer cirurgias plásticas, utilizar hormônios, entre outras coisas, para moldar a nossa aparência, mas mesmo isso, a que custo acontece? E por que?] Já os versos seguintes colocam uma propriedade de igualdade do indivíduo mesmo dentro de uma gigante desigualdade (no caso, social): a de que não escolhemos as circunstâncias que são colocadas em nossas vidas. "Se vocês tivessem crescido num palácio ou se fossem deixados pelas ruas / Vocês que escolhem a hora e o local que nasceriam?!". Temos, sim, uma história, uma cadeia de coisas que dão em nosso nascimento, mas nós individualmente não somos aqueles que detemos essa escolha.
          De primeiro momento isso chega a parecer perverso, mas é aí que entra a carga de filosofia de vida que mencionei que me passa... É que então diante desse fato intrínseco à existência humana, como vamos nos portar? Por exemplo o fato de estarmos num meio hostil justifica uma estagnação de reproduzir essa própria hostilidade? E do contrário, ao nascermos num meio cômodo, justifica a manutenção do comodismo, que quase sempre acontece ao custo de muito sofrimento alheio, ou seja, isso é estar mesmo cômodo? Enfim, acho que a pergunta é: o que há de humanamente benéfico no fato de nos apoiarmos e reproduzirmos as nossas circunstâncias primárias, que na verdade não são escolhidas/construídas por nós? Não há movimento aqui, não há benefício real, mas apenas perpetuações de superficialidades. Há apenas um tipo de conformismo predatório, pro indivíduo e pro social. Mas isso aí já é brisa minha que não cabe num parágrafo.

Dustin Kensrue

          A questão da música mesmo é, voltando, trazer aquela fragilidade, a pequenez do ser humano, que se encontra seja nas coisas que construímos, seja na nossa carência de poder escolher certas circunstâncias de nossa vida. Quando Dustin lançou nota anunciando o nome do álbum, ele comentou o seguinte: “Acho que na maioria das vezes a gente se ilude em pensar que somos totalmente responsáveis por nossas circunstâncias, mas no fim quase todas as coisas estão fora de nosso controle, num nível mais alto, e a gente não pode nem mesmo ter certeza de que acordaremos amanhã. Independentemente de se você acredita que Deus o criou por algum propósito, ou que o mundo é governado pelo acaso, tudo na vida, no seu âmago, é dado para nós: somos todos pobres mendigos”.
         Na música, todas essas coisas dadas nos são apresentadas, no fundo, como uma dádiva/benção (“everything is grace, after all”), ou seja, como se assim devêssemos encará-las, mas não o fazemos, e isso tem ligação com o forte caráter cristão de Dustin. Aliás, diz a história que quando Martinho Lutero (um dos principais nomes da Reforma Protestante) foi morto, foi encontrado um papel em seu bolso, com a frase: "we are all beggars, this is true", algo como "somos todos pobres mendigos, é verdade".

Capa do álbum "Beggars"
         Mas aqui, considerando que esse mesmo caráter cristão de Dustin é aquele muito questionador (da própria religião, inclusive), essa escolha de palavra assume que é possível encontrar uma beleza nisso tudo, uma apreciação da vida como ela é, em suas profundezas, não por aceitar simplesmente as condições impostas, mas pelo sentimento que a compreensão do estado da pequenez humana proporciona, pelo sentimento que gera aquela humildade que mencionei acima, muito em falta. Basta olhar pra outras músicas desse álbum, e de outros da banda também (que com certeza vai aparecer muito aqui). É nesse sentido que o termo “beggars” (mendigos) entra: no sentido de que todas as coisas são dadas para nós. Pra mim, ele quer assumir também uma outra coisa, num nível mais profundo... Que não importa em qual condição viemos à Terra, no fundo, nós vivemos mesmo é mendigando migalhas de vida, atrás de esmolas de beleza, e sofrendo a nossa liberdade.




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